A 1 de maio de 1938, o dia que começara com júbilo em Viana do Castelo e em Barcelos se respiravam as “Cruzes“, terminou envolto em tragédia e luto profundo.
A Festa do Trabalho, celebrada com grande pompa por ordem de Salazar, viu-se marcada por um desastre ferroviário que ceifou vidas e deixou uma dor irreparável na região.
Embora o acidente tenha ocorrido em Viana do Castelo, foi na zona sul do concelho de Barcelos que as suas conseqüências mais devastadoras se fizeram sentir.
Em Chorente, 17 pessoas perderam a vida, sendo 14 enterradas no cemitério local em um único dia. As localidades de Chavão, Gueral, Carvalhas e Macieira de Rates também choraram as suas perdas.
Uma noite de horror
A tragédia aconteceu quando uma carrinha de caixa aberta, transportando cerca de 40 passageiros de regresso às suas aldeias, foi colhida por um comboio especial ao atravessar uma passagem de nível.
Eram 15 minutos após a meia-noite.
O impacto foi imediato e mortal: 21 pessoas faleceram no local, e o número de mortos aumentaria para pelo menos 26 nas horas seguintes, devido à gravidade dos ferimentos de vários passageiros.
O dia 3 de maio, marcado pelo feriado municipal em Barcelos e pela tradicional Festa das Cruzes, transformou-se em uma data de profunda consternação.
A celebração foi suspensa e substituída por um cortejo fúnebre que mobilizou milhares de pessoas, em manifestação de luto coletivo.
Relatos de uma tragédia
Segundo os jornais da época, como “A Aurora do Lima” e o “Jornal de Notícias (JN)”, o acidente foi descrito em termos chocantes.
O impacto do comboio contra a camioneta foi tão violento que corpos foram projetados e mutilados. A linha férrea tornou-se um cenário de horror, com destroços do veículo e restos humanos espalhados ao longo dos trilhos.
No Hospital da Misericórdia de Viana do Castelo, para onde as vítimas foram levadas, o ambiente era descrito como um filme de terror, com feridos em estado grave e corpos alinhados na morgue, aguardando identificação.
Em Chorente, o impacto foi particularmente devastador. Famílias inteiras foram dizimadas. Casais e filhos faleceram juntos, como no caso de Albino Joaquim da Costa, seu filho Gabriel e sua esposa Maria de Oliveira.
O pequeno cemitério da freguesia tornou-se um local de dor coletiva, onde coveiros exaustos trabalhavam incessantemente para abrir sepulturas suficientes. Em um único dia, 14 corpos foram ali enterrados, sob uma chuva torrencial.
Busca por culpa
O desastre suscitou uma onda de questionamentos sobre as responsabilidades. Como foi possível que as cancelas estivessem abertas no momento da passagem do comboio?
Uma comissão de inquérito foi criada para apurar os fatos, mas as respostas foram insuficientes. A condutora da passagem de nível, Angelina de Jesus Brandão, alegou não ter recebido informações sobre os horários dos comboios especiais.
O motorista da camioneta, por sua vez, declarou que atravessou a passagem porque as cancelas estavam abertas e não havia sinalização de perigo.
Outro ponto de controvérsia foi o uso de uma camioneta de carga para transporte de passageiros. Em condições normais, tal prática seria proibida, mas fora autorizada devido à falta de meios de transporte para a Festa do Trabalho. Contudo, não foram respeitadas as normas de segurança, agravando as consequências do acidente.
### Lágrimas e Perdas Irreparáveis
O impacto emocional foi esmagador. Pais perderam filhos, esposas ficaram viúvas, e comunidades inteiras foram abaladas. Em Chorente, um dos sobreviventes, António Gomes Ferreira de Brito, relatou ao JN como reconheceu os filhos mortos, Maria Cândida e Luiz, apenas pelas roupas que vestiam. Histórias de dor, como a de Tereza Faria, que cedeu o seu lugar na camioneta à jovem criada Maria das Dores, que acabaria por morrer no desastre, marcaram o imaginário coletivo.
A tragédia também gerou mudanças estruturais. Passagens de nível viárias em Viana do Castelo foram gradualmente eliminadas, sendo substituídas por viadutos e outras soluções mais seguras.
Memória viva
Desastre de Gontim, como ficou conhecido, permanece na memória das comunidades afetadas. Chorente, uma freguesia de apenas 130 fogos e 700 habitantes na época, perdeu 14 dos seus membros em minutos.
Em um testemunho de luto coletivo, a tradição e a celebração deram lugar à memória das vidas perdidas, calando as cruzes que deveriam trazer alegria à cidade de Barcelos.