No Inverno de 2014 um importante conjunto de madeiras de cariz náutico começou a ser arrojado à costa portuguesa, a norte de Esposende, na praia do Belinho.
Juntamente com as madeiras deram igualmente à costa artefactos metálicos diversos, concreções ferrosas e pelouros em pedra. Madeiras e artefactos provinham indubitavelmente de um local de naufrágio ainda desconhecido, mas situado ou ao largo daquela praia ou nas suas imediações mais a norte.
Como a natureza rochosa do fundo, a frequência da agitação marítima e a fraca visibilidade dificultavam a localização do suspeitado destroço, a salvaguarda do sítio limitou-se à recolha e protecção das peças arrojadas, tarefa levada a cabo pela Divisão de Acção Cultural da Câmara Municipal de Esposende (CME).
No verão de 2015 uma equipa pluridisciplinar, financiada pela CME e pelo projecto ForSEADiscovery Marie Curie da União Europeia (PITN-2013 GA607545), registou e catalogou as madeiras arrojadas até essa data.
Entre 2015 e 2017, sucessivas tempestades levaram a novos arrojamentos. Muitos deles ocorreram a desoras, sem a supervisão dos técnicos da CME ou dos achadores originais, concorrendo para a delapidação dos bens arqueológicos, quer sob efeito do mau tempo, quer efectivamente desaparecendo por serem levados por outros utentes da orla marítima.
Entre Abril e Maio de 2017, foram preparadas, implementadas e conduzidas ao largo da praia de Belinho prospecções geofísicas e efectuados mergulhos em apneia e de escafandro autónomo para reconhecimento de anomalias detectadas pela geofísica ou assinaladas pelos achadores.
Desta acção resultou a identificação e a georreferenciação de uma âncora, de 4 bocas-de-fogo em bronze e em ferro, de madeirame em conexão e de vários artefactos em contexto de sítio de naufrágio, naquilo que aparenta ser um dos mais importantes sítios arqueológicos submersos até agora localizados em Portugal.
O naufrágio do “Belinho 1”, provisoriamente datado de meados do século XVI, apresenta uma oportunidade fantástica para estudar de raiz um navio intocado, protegido durante séculos por uma camada de sedimentos, sem que as típicas acções humanas de recolha de artefactos ou outras formas de distúrbio do sítio se tenham feito sentir de forma pronunciada até à sua muito recente exposição.
Formação do sítio
A praia de Belinho – também conhecida localmente como praia da Barca, da Carruagem, ou das Neves – localiza-se no Norte de Portugal, no distrito de Braga, concelho de Esposende, em território da União de Freguesias de Belinho e Mar.
Integrando o domínio público marítimo, a área em questão está sob tutela territorial da Capitania do Porto de Viana do Castelo, estando ainda inserida dentro do Parque Natural Litoral Norte.
Tal como acontece com tantas outras praias do país, a praia de Belinho tem vindo a ser afectada pelo processo dominante de erosão costeira que tem vindo a impactar, desde a segunda metade do século XX, a zona costeira do noroeste de Portugal.
Com efeito, embora tenham vindo a manter os antigos sistemas dunares, as largas praias arenosas que existiam entre o rio Lima e o rio Cávado têm vindo a dar lugar, de forma ainda mais pronunciada desde o final da década de 1980, a praias mistas de areia-cascalho ou com cúspides de seixos.
Esta observação empírica foi corroborada por um estudo efectuado entre 1994 e 2004, onde se registou um recuo de 10 metros da crista da arriba talhada nas dunas frontais.
Assim sucedeu com a praia de Belinho, onde actualmente a morfologia dominante se caracteriza pela presença de uma crista de seixos, paralela à duna frontal, com declive acentuado e de largura e altura variável, crista essa que se estende desde a base da arriba até aos bancos e às pequenas regueiras orientadas norte-sudoeste, regueiras essas formadas pelos afloramentos rochosos paleozóicos existentes na zona inferior da praia.
Ao longo da última década, o fenómeno erosivo acima descrito tem originado no concelho de Esposende um conjunto notável de descobertas arqueológicas relacionadas com o mar.
Estas descobertas correspondem a contextos tanto marítimos como fluviais, e associam-se directamente à posição geográfica da costa de Esposende, em cuja fachada atlântica (pré-praia) abundam restingas submersas que, criando condições para ancoragem, são também propiciadoras de naufrágios. A actual configuração e o reduzido estado da praia de Belinho levaram a que a espessura de sedimentos que recobria a sua parte imersa diminuísse.
Tal terá conduzido a que situações de agitação marítima extrema, ocorridas num passado muito recente, tenham desestabilizado um sítio arqueológico submerso ao largo, arrojando-se, em diversos momentos, parte deste à costa.
O aparecimento dos restos de um navio ali perdido no século XVI deixa supor que as praias agora erodidas eram de formação geológica relativamente recente. Os processos de carregamento da praia e subsequente erosão serão objecto de estudo pormenorizado, que nos permita perceber o processo de perca do navio e formação do sítio arqueológico.
Não é contudo de descartar que este sítio fosse conhecido anteriormente. Afinal, existia informação oral – recolhida por Ivone Magalhães, aquando da implementação, na década de 90,do projecto de Carta de Arqueológica IPARMALE – de que nesta zona estariam submersos uma âncora de características enquadráveis na Época Moderna e dois canhões em bronze.
Seja como for, é apenas entre 2011 e 2013 que alguns achados na costa aludem à possibilidade de haver ao largo um naufrágio. Com efeito, é nesse período que João Sá recolhe no sítio arqueológico presentemente denominado Belinho 2 – o qual se situa a 1.75 km a sul da praia de “Belinho 1” – um conjunto de pelouros em ferro e diversas peças concrecionadas, também em ferro, de tipologia indeterminada. Este gotejar de achados sofre uma alteração quando, durante a forte e excepcional agitação marítima ocasionada pela super-tempestade Hércules em Janeiro de 2014, Luís Miguel Calheiros, residente local que fazia a sua caminhada matinal pela costa, encontrou algumas peças “que pareciam capacetes metálicos”.
Dada a curiosidade que este achado despertou, Luís Calheiros pediu auxílio a João Sá, seu familiar e o achador original dos pelouros em ferro. A partir desta descoberta e com a colaboração de mais dois familiares – Alexandre Sá e Emanuel Sá – os quatro achadores deram início à recolha das diversas peças que a baixa-mar permitia visualizar, nomeadamente diversas madeiras de grandes dimensões e dezenas de pratos em latão e estanho, os tais “capacetes”.
Face ao insólito dos materiais, João Sá comunicou o achado ao Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática/ Direcção Geral do Património Cultural (CNANS/ DGPC).
Estudo e proteção
Este conjunto de madeiras e artefactos da praia de Belinho foi prontamente identificado pelas arqueólogas da CME, Ana Paula Almeida e Ivone Magalhães, como sendo de excepcional importância – até porque o achamento se caracterizava por uma extraordinária quantidade de artefactos arqueológicos coevos entre si e enquadráveis entre os séculos XVI e XVII.
Do espólio arqueológico, destacavam-se mais de uma centena de pratos em liga de estanho e em liga de latão, escudelas em liga de estanho, castiçais em liga cúprica, cota de malha, um machado em ferro com cabo de madeira, pelouros de diverso calibre em pedra, bem como fragmentos de madeira e metal, revestidos a couro – eventualmente de armamento individual.
O conjunto e o sítio receberam então a designação de “Belinho 1”, com as madeiras e os demais artefactos a terem a pronta atenção da Câmara Municipal de Esposende, que providenciou um local para o armazenamento e cuidados de conservação imediatos para os achados.
Entre 2014 e 2015, o sítio de “Belinho 1” esteve diariamente sob vigilância visual, até à linha de água e durante a baixa-mar diurna, vigilância essa reforçada sempre que houvesse previsão de forte agitação marítima e baixa-mar inferior a 0.50m. Decorrente dos trabalhos desenvolvidos e enquanto a maré o permitisse, promoveu-se a recolha sistemática do espólio arqueológico que estivesse exposto.
Artefactos
A primeira análise aos materiais recuperados associados ao sítio do possível naufrágio “Belinho 1” remonta a Dezembro de 2014. A maioria dos artefactos divide-se em dois grupos principais: objectos em estanho e em liga de cobre.
Ainda que pelo menos cerca de 200 objectos em estanho correspondam a peças isoladas, entre pratos completos e fragmentos reconheceram-se 228 objectos, não se podendo ignorar a hipótese de alguns destes fragmentos corresponderem às mesmas peças.
Os pratos, morfologicamente, apresentam-se de aba curta e com fundo em ônfalo. Surgem em quatro tamanhos distintos: os de maiores dimensões oferecem um diâmetro de bordo aproximadamente de 47 cm em seguida, surgem alguns exemplares com 36 cm de diâmetro, finalmente, nos pratos mais numerosos, há diâmetros entre os 25 cm e os 24 cm m de diâmetro, com 18 cm no bordo.
Várias peças apresentavam marcas. Das marcas identificadas em 2015 e desenhadas por Christopher Dostal, conservador da Texas A&M University associado ao projecto., uma parece conter uma coroa e uma rosa.
A rosa coroada é uma marca frequente desde o século XVI nos pratos em estanho demonstrando qualidade de produção. Outra marca, a mais abundante, contém um martelo coroado.
Estas marcas têm muitas variantes, dependendo do produtor. Em um dos casos é possível reconhecer duas iniciais de fabricante, “U” e “C”, um tipo de marca utilizado com frequência nas produções dos Países Baixos ou Alemanha.
Os martelos coroados estão representados na Bélgica, no final do século XV, no século XVI na Suíça e no século XVII, na Escócia.
Ainda que escudelas de asas recortadas, quase que sugerindo pétalas, sejam achados frequentes durante o século XVI, o sítio de “Belinho 1” até ao momento revelou apenas dois destes objectos, sendo o diâmetro do seu bordo de 17 cm e o fundo, ligeiramente em ônfalo.
Peças afins foram recuperadas no naufrágio português na Namíbia, mas igualmente a bordo do “Mary Rose” e do Aldernay Wreck, datado da segunda metade do século XVI, e nos naufrágios da Grande Armada de 1588.
Outros objectos em estanho foram recuperados, nomeadamente uma caneca com asa, que certamente possuiria uma tampa. Peças afins são recuperadas com frequência em contextos de naufrágio, nomeadamente no presumível “Bom Jesus”, mas igualmente no “Mary Rose”.
Dois candelabros em estanho, destinados à iluminação com velas, foram igualmente recuperados. Peças afins foram identificadas no Punta Cana Wreck, datado de meados do século XVI. Igualmente em estanho foi recuperado, já em 2016, um pote, desprovido de asas, mas que, pela perfuração no bordo, pode ter contido uma tampa. A sua funcionalidade é discutível.
Cronologicamente é difícil datar os objectos em estanho. Estes artefactos são muito semelhantes durante o século XVI e primeira metade do século XVII e uma presença constante em contextos de naufrágio de época moderna. Mais fácil será atribuir uma cronologia aos “pratos de esmolas” que sabemos terem sido produzidos, com características afins às peças recuperadas em Esposende, entre 1500 e 1580, ainda que uma cronologia entre 1520 e 1580 seja a mais indicada.
Até finais de 2014 cerca de cinco dúzias destes pratos em latão tinham sido recuperados na praia de Belinho. Ainda que alguns deles estejam muito fragmentados, estamos perante pratos de enormes dimensões com um diâmetro que varia entre os 47 e os 50 cm, cujo maior centro de produtor europeu se localizava em Nuremberga – ainda que centros produtores sejam conhecidos na Bélgica, em diversos pontos da Alemanha e mesmo nos Países Baixos.
São conhecidas diversas decorações – as peças encontradas na praia de Belinho limitam-se a apresentar iconografias religiosas, coma excepção de um prato decorado com elementos vegetalistas, ao centro, tipo pétalas.
Uma das imagens mais bem conservadas trata-se da representação de São Cristóvão, com o menino aos ombros e segurando um cajado com forma de tronco de árvore. Um dos pratos conserva decoração central, onde se pode observar uma cena do Antigo Testamento em que Josué e Caleb transportam um cacho de uvas colhido no Vale dos Cachos. Ainda de destacar um outro prato onde se verifica uma cena na qual Eva, instigada pela serpente, dá a Adão a maçã proibida. As cenas religiosas encontram-se entre as mais frequentes deste tipo de produções, tanto na Alemanha como em outros países.
O número de artefactos recuperados ainda não nos permite inferir se estamos perante parte da carga ou dos objectos de uso diário da tripulação. No entanto, analisando as cerca de duas dezenas de pratos recuperados e o conhecimento de diversos outros objectos, ainda submersos, sugerem que estamos possivelmente perante carga.
Madeiras
As 80 peças de madeira arrojadas deram à costa desarticuladas, uma a uma, e apresentam vestígios do processo dinâmico de desmantelamento da estrutura a que pertenciam.
Recolhidas nos tanques da Câmara Municipal de Esposende foram observadas e organizadas, segundo a sua função estrutural: peças da estrutura longitudinal, peças da estrutura transversal, tabuado e peças não diagnósticas.
Destas peças, avulta o conjunto formado pelas peças da estrutura longitudinal, constituído por um fragmento da quilha, um fragmento do cadaste, o coral da popa e um fragmento da sobrequilha que contém o pé do mastro. Todas estas peças apresentam-se bastante erodidas e quebradas, com a excepção do coral da popa, que está quase intacto.
A sua tipologia é comum na tradição construtiva da Península Ibérica da Idade Moderna, embora apresentem alguns aspectos não previamente observados, designadamente no que diz respeito ao calafeto e à protecção da superfície exterior das madeiras.
As madeiras arrojadas em 2014 e 2015 apresentavam características geométricas que as colocam sem sombra de dúvida nas zonas da popa e da meia-nau. Sugerem também que o plão – a medida da parte horizontal da base da caverna mestra – media cerca de 2.70m.
Considerando as características dos navios mercantes desta época, esta medida sugere que um navio com uma boca duas a três vezes aquele valor (5.4 a 8.1 m), uma quilha mais ou menos duas vezes o valor da boca, de 10.8 a 16.2 m, e uma eslora mais ou menos de 16.2 a 24.3 m.
Uma secção da quilha com cerca de 9 m foi recuperada desta zona, juntamente com parte do cadaste e do coral da popa – uma madeira em forma de joelho que reforçava a ligação da quilha ao cadaste.
Embora estas medidas indiquem um navio de pequeno porte, com cerca de 50 a 100 toneladas, as secções das madeiras recuperadas sugerem um navio maior. Com efeito, quer a secção da quilha, cavernas, malha – a distância entre os eixos das cavernas – e grossura do tabuado são mais próximas das médias observadas nos navios San Diego (1600) ou Emanuel Point I (1559), cuja eslora se aproximava mais dos 33 m. As medidas aqui indicadas são estimativas preliminares.
As cavernas centrais e os fragmentos de braços apresentam vestígios de escarvas de rabo de minhoto, típicas da tradição construtiva atlântica, com paralelos arqueológicos em navios ibéricos e no norte da Europa, tendo sido registada nos navios Ray A, Cattewater, B&W07 e Greesham. A pregadura, constituída por pregos de ferro e cavilhas de madeira, tem vários paralelos na região norte da Península Ibérica.
A existência de um coral da popa provavelmente não associado a um couce – uma peça curva que ligava a quilha e o cadaste em navios ibéricos – não é, por si só, característica da Península Ibérica ou de outra região em particular.
A geometria do coral encontrado no “Belinho 1”, com o canto posterior cortado em ângulo, só tem um paralelo arqueológico – no navio basco “San Juan,” perdido em 1565 na Terra Nova. Na maioria dos navios com a couce e coral da popa, este canto é cortado em redondo, acompanhando e aproveitando o veio da madeira. O ângulo do cadaste com a quilha é 75.6o, um valor consentâneo com os dos paralelos históricos e arqueológicos considerados.
Os navios espanhóis parecem ter também cadastes mais inclinados do que o do Corpo Santo, mas a amostra não tem dimensões suficientes para permitir emitir qualquer julgamento.
A protecção do tabuado do casco é única, sem paralelos arqueológicos publicados. As tábuas foram preparadas na face exterior com incisões triangulares e rasgos horizontais ou sub-horizontais, seguindo o veio da madeira, com cerca de 5-7 mm de profundidade e cobertas por uma substância gordurosa cuja análise está ainda pendente.
Um número importante de marcas de pregos de menores dimensões indica a existência de uma protecção exterior, ou com tábuas de madeira, ou com folha de chumbo. A irregularidade da pregadura torna a hipótese duma protecção do forro exterior do navio com tábuas implausível. Além disso, meia centena de folhas em chumbo, semelhantes às encontradas no naufrágio do Angra D – um eventual “galeón de la plata” espanhol de finais do século XVI – foram encontradas na zona do naufrágio.
As faces interior e exterior das tábuas apresentavam marcas de serra irregulares, sugerindo terem sido serradas à mão, bem como marcas de enxó – como é característico nos navios dos séculos XVI e XVII. A análise da matéria empregada na protecção da madeira não está ainda concluída. O pé do mastro é uma extensão da sobrequilha, alargada e denteada sobre as cavernas. Esta configuração é típica dos navios ibéricos e norte-europeus.
Prospeção geofísica
Dada a desestabilização do sítio ocorrida certamente em 2014 aquando da tempestade “Hércules”, era de todo expectável que tempestades similares, mesmo que de intensidade dita normal, degradassem o contexto até ao seu arrojamento final e consequente dispersão e destruição dos mais variados artefactos, quer pela sua perda pela acção dos elementos naturais, quer pela sua recolha por “curiosos” e demais utentes da praia e da orla marítima.
Tais perdas eram atestadas pelos arrojamentos sucessivos de material arqueológico proveniente obviamente do mesmo sítio – a última ocorrência comprovada foi a provocada pela tempestade “Doris”, em Fevereiro deste ano de 2017, que novamente fez dar à costa pratos metálicos e madeirames.
Assim, dada a impossibilidade de se exercer vigilância reactiva, contínua e aturada sobre a zona e dada ainda a inevitabilidade da destruição total e final deste património à guarda do nosso país, urgia implementar uma estratégia proactiva de salvaguarda deste sítio.
Em consequência, a CME, o IAP decidiram submeter à consideração da DGPC uma proposta metodológica de prospecção geofísica arqueológica subaquática e de mergulho em apneia e escafandro para verificação das anomalias eventualmente detectadas, no sentido de se localizar o sítio do naufrágio de onde provinham os arrojamentos.
Assim, de 13 de Abril a 4 de Maio decorreram os preparativos logísticos, os contactos com os achadores e as deslocações dos técnicos envolvidos a Esposende, bem como os referidos trabalhos de prospecção geofísica e de verificação de anomalias, efectuados entre finais de Abril e princípios de Maio.
Analisados os locais de concentração dos bens, era possível avançar com hipóteses para a localização do contexto do naufrágio da época Moderna ao qual pertenciam os madeirames, pratos, projécteis e demais artefactos coevos arrojados à costa.
O equipamento utilizado pela equipa de prospecção subaquática do Laboratório de Sistemas e Tecnologia Subaquática, Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto consistiu em dois submarinos autónomos (AUV’s). Os dados magnéticos captados pelo AUV LAUV-Xtreme foram corrigidos e mostrados como perfis ao longo da trajectória do AUV, sobrepostos sobre fotografia de satélite da área pesquisada.
Simultaneamente, na praia de Belinho, achadores e arqueólogos tentavam localizar estruturas e recolher os materiais que estivessem expostos e passíveis de se extraviar. Durante essa operação, foram posicionados dentro de água, em sítio de rebentação, vários locais com provável interesse arqueológico.
Localização do Naufrágio
No dia 24 de Abril, procedeu-se à georreferenciação e ao poitamento dos presuntivos locais correspondentes às peças de artilharia e âncora.
Na tarde do mesmo dia, já com a preia-mar em decurso, uma imersão de uma hora e quinze minutos de duração, efectuada entre as bóias, levou à imediata descoberta de elementos de madeira, em conexão, de grandes dimensões e ao avistamento de dois pratos em estanho enterrados a meio corpo, na vertical, no sedimento.
Uma deslocação para leste permitiu confirmar a existência de duas bocas-de-fogo em bronze, praticamente sobrepostas, que passámos a tomar como ponto orientador, bem como a existência de uma outra boca-de-fogo, de retrocarga e em ferro, a cerca de 5 metros de distância destas, para sudoeste.
No local, as condições de visibilidade oscilavam entre 20 cm e 1.5m, conferindo os sedimentos em suspensão na coluna de água-forte coloração esverdeada à mesma. Contudo, dadas as ideais condições de meteorologia e agitação marítima verificadas no local – brisa ligeira de sul, maré enchente, ondulação mínima, ocorrendo apenas pequena vaga junto à zona de rebentação – conseguiu-se proceder a uma avaliação directa de uma pequena parcela deste sítio submerso.
Na zona, o fundo marinho é de natureza mista. Com efeito, do leito de areia imediatamente contíguo à faixa rochosa que fica parcialmente emersa na baixa-mar, erguem-se de forma espaçada afloramentos rochosos, que na preia-mar terão os seus topos superiores compreendidos entre os 3 e os 5 metros de profundidade. É exactamente por entre estes afloramentos rochosos que se espalha o local do naufrágio, estando protegido o casco e os demais artefactos pela espessa areia fina e pelos inúmeros seixos rolados e demais burgau miúdo que constituem o fundo marinho.
Uma deslocação para noroeste em relação a estas duas bocas-de-fogo conduziu até à segunda bóia, marcando esta efectivamente um ferro de fundear, com seu arganéu.
A terceira boca-de-fogo, situada mais a sudoeste, é em ferro, de retrocarga, típica da primeira metade do século XVI. À parte uma fractura na bolada, apresenta-se com seu pião e rabo completos. Assentando em falso sobre dois penedos, mede da bolada à extremidade do “rabo de jogar” 2 metros de extensão.
Junto a esta boca-de-fogo, assente no fundo junto ao rabo, encontra-se uma peça de madeira do navio onde forte concreção de ferro poderá indicar ser este o encaixe do pião no talabardão.
A nordeste da âncora foi identificada uma concreção, de grande dimensão. Pela forma apresentada e pela sugestão de bocal, estamos em condições de poder especular tratar-se de uma quarta boca-de-fogo, em ferro, tudo indicando ser um dos canhões pedreiros que dispararia os projécteis em pedra, de maiores dimensões, que um pouco por todo o sítio se encontram debaixo do sedimento.
As duas bocas-de-fogo em bronze, do tipo colubrina média são muito similares. Ambas apresentam secção octogonal, uma característica que terá surgido por volta de 1500, saindo de cena por volta de 1550. Têm alma com cerca de 7 cm de calibre, apresentando 2.65 metros de comprimento total, incluindo a moldura da espalda e o cascavel. O corpo é simples, não estando seccionado em reforços nem apresentando quaisquer molduras ou bocéis.
De igual modo, ambas as túlipas são despojadas, consistindo num bocal igualmente octogonal.
A moldura de espalda é simples, decrescendo concentricamente, terminando num cascavel cilíndrico, também ele despojado. Na verdade, nenhuma das armas apresenta quaisquer marcas decorações ou epígrafes. Por ambas estarem assentes em posição invertida – facilmente verificável por o ouvido da culatra não estar visível – não será de descartar a possibilidade de estarem marcadas com as armas de uma casa real e/ou com a epígrafe do fundidor.
De referir que a bolada da arma em posição mais inferior se apresenta algo erodida e desgastada, o que pode evidenciar ter estado no passado em contacto com algum material ferroso, sofrendo corrosão mais acentuada.
Foram ainda detectados quatro grandes conjuntos de madeiras articuladas entre si, no que aparenta ser parte do costado exterior de um navio de largas dimensões, existindo nestes conjuntos madeiras de volumetria e expressão que poderão corresponder a vaus ou até a um coral de proa.
Com excepção de uma madeira bastante enterrada, mas evidenciando o que parece ser um embornal na base de uma caverna, não se avistaram outras madeiras que aparentassem ser cavernas, braços, quilha ou sobrequilha. Pelo contrário, por toda parte se encontram pratos em estanho e pelouros em pedra, bem como diversos fragmentos de placa de chumbo que terá servido muito provavelmente como protecção do casco contra o ataque de moluscos xilófagos.
Conclusões preliminares
Embora os materiais arqueológicos apontassem preliminarmente para um intervalo cronológico entre o último quartel do século XVI e o primeiro do século XVII – nomeadamente observando-se os pratos em estanho e em latão, cujas marcas sugerem origem alemã ou flamenga, sem dúvida do Norte da Europa – as características arcaicas do ferro de fundear e a tipologia da artilharia encontrada sugerem uma data anterior para a perda deste navio: 1525-1550.
É de ressalvar, no entanto, que apenas uma análise detalhada da colecção de artefactos permitirá avançar com uma datação mais precisa para este sítio – até por não ser raro encontrarem-se bocas-de-fogo com várias décadas de uso em restos de navios naufragados entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII.
Seja como for, as colubrinas octogonais em bronze de “Belinho 1” são em tudo similares a uma outra, também de secção octogonal, que surgiu no naufrágio da presumida nau “Bom Jesus”, da frota da Índia de 1533. Aliás, parte do espólio deste sítio localizado na costa da Namíbia em 2008 – as escudelas e os pratos em estanho, os pelouros em pedra – têm paralelos com os artefactos encontrados no naufrágio de “Belinho 1”.
Embora os materiais de cobre e estanho encontrados até agora não tenham ainda sido estudados por especialistas, sendo impossível indicar com segurança a sua datação precisa, um inventário dos punções existentes nos pratos de estanho está a ser realizado para posterior estudo.
Resumindo: se com os dados que possuímos neste momento não é possível avançar uma datação deste sítio com segurança, o horizonte temporal para a perda deste navio parece-nos estar compreendido entre 1520 e 1580. Curiosamente, há um registo de naufrágio nesta área, o navio “Nossa Senhora da Rosa”, perdido em 1577 “através de Esposende”, quando vinha das Canárias para Vila do Conde com uma carga de vinho e breu, mas os destroços encontrados até agora sugerem ter sido este um navio de maior porte – bem maior do que a maioria dos navios que percorriam as rotas das Canárias, Açores e Madeira no século XVI, navios esses normalmente com tonelagens ligeiramente inferiores a 100 toneladas.
Seja como for, talvez a característica mais importante e rara deste sítio seja o facto de estar intacto, sem nunca ter estado exposto depois de ter sido coberto por sedimentos. Sítios de naufrágios intocados são raríssimos e extremamente importantes pela quantidade de informação que podem conter.
Neste caso, estamos perante o primeiro naufrágio quinhentista em águas portuguesas a ser encontrado praticamente intocado desde a sua perda; o único a produzir artilharia em bronze; e o mais capaz de conter ainda em si todo o espólio de um navio dessa altura: astrolábios, compassos de navegação, armamento colectivo e pessoal, numismas, carga, possessões individuais dos marinheiros e, claro, o próprio casco, que tudo leva a crer ser ibérico, espanhol ou português.
A ser ibérico, tratar-se-á de um dos mais completos sítios desta tipologia e cronologia a ser encontrado a nível mundial. Daqui deriva também a presumível importância deste naufrágio que poderá constituir, sem grandes margens para dúvidas, uma das mais importantes descobertas arqueológicas subaquáticas feitas até agora em Portugal Continental e Ilhas, a par dos dois grandes cepos pré-romanos da Berlenga, das pirogas 4 e 5 do rio Lima, e dos destroços dos navios de Ria de Aveiro A, do Cais do Sodré, do Angra D e da “Nossa Senhora dos Mártires”.
Texto: Ana Almeida e Ivone Magalhães